ARTIGO – DOCUMENTOS DIGITAIS E O ROL DOS TÍTULOS EXECUTIVOS EXTRAJUDICIAIS – POR PAULO HENRIQUE GOMIERO
Nos últimos anos, a legislação referente a documentos tem passado por uma evolução para se adaptar ao cenário dinâmico e cada vez mais tecnológico das transações. Impulsionados pelo contexto pandêmico, os documentos realizados e formalizados em formato digital ganharam importância devido à redução das interações pessoais e ao aumento das transações entre partes ausentes. Além disso, a redução do uso de papel é fundamental para a sustentabilidade e a preservação ambiental.
Desde 2001, a Medida Provisória 2.200-2/2001, que continua em vigor por ter sido promulgada antes da Emenda Constitucional nº 32, já tratava de assinaturas eletrônicas e padrões para garantir sua confiabilidade, seja por assinaturas certificadas pela Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) ou não. Isso representou um avanço para a realização de negócios jurídicos tanto públicos quanto privados de maneira eletrônica.
Após quase duas décadas desse regramento sobre assinaturas eletrônicas, ainda que com certo atraso (considerando a curva crescente das transações em formato eletrônico) a legislação continuou evoluindo ao reconhecer os direitos de liberdade econômica pela Lei 13.874/2019. Essa lei estabeleceu uma base principiológica e uma declaração de direitos com efeitos em diferentes esferas com o objetivo de desburocratizar as relações econômicas.
De acordo com essa lei, os documentos arquivados em formato eletrônico se equiparam ao documento físico para todos os efeitos, inclusive em atos de direito público. Embora seja criticável o regulamento dessa lei (Decreto 10.278/2020), que burocratiza o procedimento de validação de documentos digitalizados, indo contra a intenção original de desburocratização, é necessário reconhecer que essa previsão legal representa um avanço. A partir desse ponto, não há dúvidas, do ponto de vista legal, de que é possível celebrar negócios jurídicos em formato eletrônico, tanto em sua forma quanto por meio de assinaturas válidas.
Com esse regramento em vigor até 2020, embora houvesse um campo fértil para o uso de documentos eletrônicos, ainda havia discussões sobre a eficácia destes, principalmente quando não utilizavam assinaturas certificadas pela ICP-Brasil. Apesar de a Medida Provisória 2.200-2/2001 permitir que as partes de um negócio reconheçam como válidas assinaturas não emitidas pela ICP-Brasil (artigo 10, §2º), havia debates sobre a ausência da presunção de veracidade conferida às assinaturas certificadas pela ICP-Brasil e ausente nas demais não certificadas.
Nesse aspecto, a legislação continuou evoluindo, especialmente nas questões relacionadas ao poder público, também impulsionada pelo contexto da pandemia. A Lei 14.063/2020 tratou dos diferentes tipos de assinaturas eletrônicas para negócios firmados com os entes públicos, bem como da aceitação desses documentos privados assinados eletronicamente (incluindo uma menção explícita ao contexto pandêmico). Seu regulamento, o Decreto 10.543/2020, estabeleceu os níveis mínimos exigidos para assinatura eletrônica em documentos firmados com o poder público federal.
Esses diplomas, no entanto, não abrangem os negócios jurídicos firmados entre particulares, ou seja, as transações privadas. Embora se possa estabelecer um paralelo entre os regramentos para fins interpretativos, é necessário desenvolver uma legislação mais específica para a validade dos documentos e assinaturas eletrônicas nesse contexto, o que ainda não se concretizou.
Esperava-se que a Lei da Liberdade Econômica aproximasse o Brasil de conceitos como o “Electronic Signatures in Global and National Commerce Act” dos Estados Unidos, que garante efeitos legais a qualquer documento eletrônico, ou ainda do conceito trazido pelo Direito Inglês, conhecido como “best evidence rule”, que permite a prova de um acordo entre as partes por qualquer meio. Embora esses conceitos do direito comparado sejam compatíveis com os postulados da boa-fé objetiva já amplamente debatido no Brasil, a legislação Pátria ainda carece de uma regulamentação expressa nesse sentido.
No entanto, documentos e assinaturas eletrônicas são uma realidade mundial, e centenas de milhares de negócios jurídicos são firmados dessa maneira diariamente. Considerando os impactos das transações eletrônicas, é importante particularizar, para efeitos deste ensaio, a regulamentação dos títulos executivos e as alterações trazidas pela Lei 14.620/2023, que modificou o rol dos títulos executivos extrajudiciais (aqueles que dispensam o reconhecimento judicial prévio para sua força executiva).
Anteriormente à lei, um documento particular exigia a assinatura de duas testemunhas para ter força executiva. Essa exigência se mantém em vigor, mas com uma particularidade (e aqui a inovação legislativa): quando o documento é firmado eletronicamente, as testemunhas não são necessárias se o documento tiver sido assinado eletronicamente e sua integridade for reconhecida por um provedor de assinatura.
Essa previsão legal está alinhada com o entendimento já estabelecido na jurisprudência, como no julgamento do Recurso Especial 1495920, em que o Superior Tribunal de Justiça rejeitou a exigência de duas testemunhas em documentos eletrônicos assinados com chave certificadora (como a ICP-Brasil).
Diante desse contexto, surge a seguinte pergunta após a Lei 14.620/2023: apenas os documentos eletrônicos assinados com a chave ICP-Brasil dispensam a assinatura de duas testemunhas para serem considerados títulos executivos, ou todas as assinaturas eletrônicas rastreáveis são abrangidas? Essa dúvida é razoável, já que a nova legislação menciona que as testemunhas são dispensadas quando a integridade das assinaturas é verificada por um provedor de assinatura.
A definição de “provedor de assinatura” não está clara. No julgamento mencionado do STJ, foi discutido o raciocínio por trás de assinaturas intermediadas por autoridade e a existência de um autenticador específico dessa chave (como uma verificação independente). Mas como as assinaturas sem a certificação ICP-Brasil se enquadram nesse contexto? Embora a medida provisória 2.200-2/2001 preveja a aceitação de assinaturas não certificadas pela ICP-Brasil, desde que aceitas pelas partes, a simples concordância das partes seria considerada um “provedor de assinaturas”?
A interpretação mais razoável, neste momento, seria admitir qualquer assinatura eletrônica, desde que seja rastreável (atendendo assim ao requisito de um provedor de assinatura), como dispensável da assinatura de duas testemunhas. Caso contrário, estaríamos admitindo que a lei trouxe poucas ou nenhuma alteração relevante, já que as pessoas sem acesso à certificação ICP-Brasil ainda teriam que adicionar duas testemunhas em seus documentos, como se fossem documentos físicos, o que estaria em desacordo com outras disposições legais existentes.
É importante não confundir o termo “provedor de assinatura” com “verificador de assinatura”. Uma vez que a assinatura seja rastreável, com ou sem a chave ICP-Brasil, a dispensa da assinatura de duas testemunhas para efeitos de considerar o documento como título executivo é justificada.
Na realidade brasileira, no entanto, é necessário ter cautela. Até que haja uma posição mais sólida da doutrina e jurisprudência, é recomendável incluir testemunhas em documentos na maior extensão possível, a fim de cumprir todos os requisitos da lei processual sem maiores discussões. Na impossibilidade de obter a assinatura de duas testemunhas, é recomendável incluir uma cláusula específica entre as partes para esclarecer a interpretação que estão dando ao documento como título executivo.
Como uma visão evolutiva, ainda se espera que a lei valide documentos digitalizados, incluindo as assinaturas contidas neles, deixando para a “best evidence rule” a avaliação de sua validade e executoriedade.
Paulo Henrique Gomiero é advogado e mestrando em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Fonte: ConJur