ARTIGO: Fé Pública no Estado Democrático de Direito e Inconstitucionalidade da Medida Provisória nº 876/2019 (Delegação da Fé Pública Notarial à Advogados e Contadores) por Kélcio Bandeira Barra

Nestas rápidas anotações, tentaremos desenvolver breve estudo sobre a fé pública em sua perspectiva constitucional, seu alcance, suas vertentes, e, ainda, as graves infringências da Medida Provisória 876/2019 às normas constitucionais e infraconstitucionais, bem como suas implicações negativas ao Estado.

Fé pública é a confiança atribuída pelo estado democrático de direito aos agentes públicos para prática dos atos públicos, cuja veracidade e legalidade se presumem, devendo ser exercida nas exatas limitações constitucionais e legais, sob pena de responsabilização civil, administrativa e criminal.

Somente os atos públicos (sejam eles atos administrativos, legislativos, jurisdicionais, notariais ou registrais) possuem fé pública e, por tal, somente os agentes públicos (agente político, servidor público, empregado público ou terceiro em colaboração com o poder público) exercem a fé pública.

A Constituição Federal de 1988 reconheceu, em momentos distintos, quatro espécies de fé públicas, todas autônomas, complementares e necessárias ao bom convívio social. São elas: fé pública administrativa (art. 39 e seguintes, da CF), fé pública legislativa (art. 44 e seguintes, da CF) fé pública jurisdicional (art. 92 e seguintes, da CF) e fé pública notarial e registral (art. 236, da CF).

Em total harmonia e consonância com o art. 236 da Constituição Federal, a Lei 8.935 de 1994, reconhece a fé pública e a independência funcional dos notários e registradores, in verbis:


“Art. 3º Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro.”

“Art. 28. Os notários e oficiais de registro gozam de independência no exercício de suas atribuições, têm direito à percepção dos emolumentos integrais pelos atos praticados na serventia e só perderão a delegação nas hipóteses previstas em lei.”


Para exemplificarmos como a fé pública se exterioriza nas suas quatro modalidades, observemos como se dá a adoção de uma criança ou adolescente no Brasil.

Inicialmente, o legislador aprovou a Lei 8.069 de 1990, onde está previsto o procedimento de adoção (fé pública legislativa). Esse procedimento prevê que, para colocação da criança ou adolescente em família substituta, haverá laudo favorável de equipe interdisciplinar (fé pública administrativa), e, ao final, o juiz decidirá o processo de adoção (fé pública jurisdicional), expedindo mandado para que o oficial de registro cancele o registro anterior e faça um novo registro (fé pública registral). Todos esses agentes públicos envolvidos no processo de adoção, têm em comum a observância da prevalência do interesse público sobre o privado, a impessoalidade, neutralidade e imparcialidade em seus atos e ações. Já o advogado, frisa-se também indispensável ao processo, ocupa outra posição, que é de engajamento na defesa do interesse privado, com o compromisso legal e ético de zelar pelo interesse dos adotantes, seus clientes.

Portanto, pessoas físicas e jurídicas de direito privado não praticam atos públicos (atos administrativos, legislativos, jurisdicionais, notariais ou registrais), mas sim atos privados e, assim sendo, em nenhuma hipótese exercem a fé pública.

Os agentes públicos, ao praticarem atos públicos, possuem a prerrogativa da fé pública, pois o fazem sobre o manto dos princípios e leis que regem a administração pública, dentre os quais os Princípios da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado, Imparcialidade, Neutralidade, Impessoalidade, Legalidade, Moralidade e Segurança Jurídica.

Observem que a prerrogativa da fé pública deve ser exercida de forma responsável e vinculada a estrita legalidade, pois caso seja acometida de falha, desvio ou vício, existem previsões normativas de responsabilização civil (art. 37, §6º, da Constituição Federal), penal (crimes praticados por agentes públicos no exercício da função pública) e administrativa (processo administrativo disciplinar) do agente público desidioso.

A Lei 11.925/2009, deu nova redação ao art. 830 e 895 da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, o qual passou vigorar com a seguinte redação:


“Art. 830. O documento em cópia oferecido para prova poderá ser declarado autêntico pelo próprio advogado, sob sua responsabilidade pessoal.
Parágrafo único. Impugnada a autenticidade da cópia, a parte que a produziu será intimada para apresentar cópias devidamente autenticadas ou o original, cabendo ao serventuário competente proceder à conferência e certificar a conformidade entre esses documentos.”

Fundamentando-se nesse dispositivo, algumas seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil passaram a disseminar a ideia de que os advogados passaram, a partir daquele momento, ser dotados de fé pública. Na verdade não é isto que está expresso na Lei. O que de fato houve foi uma permissividade para que o advogado pudesse declarar, sob sua responsabilidade exclusiva e pessoal, a veracidade de uma cópia de documento. Tanto é verdade que o Parágrafo Único, do transcrito artigo 830, da CLT, alerta que impugnada a veracidade da cópia, a parte que a produziu deverá apresentar cópia devidamente autenticada (ato notarial dotado de fé pública praticado em cartório) ou o original do documento.

Logo, a nova redação do art. 830 da CLT não concedeu qualquer tipo de fé pública aos advogados, até mesmo porque o estado não responde subsidiariamente pela atestação feita pelo causídico, sendo de responsabilidade única e exclusiva do mesmo.

Analogicamente podemos comparar esse dispositivo, ao art. 1º da Lei nº 7.115 de 1983, que prevê a possiblidade da parte fazer declaração de prova de vida, residência, pobreza, dependência econômica, homonímia ou bons antecedentes, também sob sua responsabilidade única e exclusiva. Aqui também não há fé pública do declarante, ele apenas declara sob sua responsabilidade única e exclusiva.

Diferentemente da Lei 11.925/2009, a Medida Provisória nº 876/19, ao incluir o §3º, no art. 63, da Lei 8.934/94 parece-nos realmente tentar delegar a fé pública a contadores e advogados para que estes pratiquem o ato notarial de autenticação, o que, a nosso ver, viola vários preceitos constitucionais e infraconstitucionais, conforme veremos.

Advogados e contadores, como todas as outras profissões privadas, submetem se as normas do direito privado, inclusive ao que tange a sua responsabilização civil (regulamentada pelo código civil e normas internas da classe, como por exemplo, Código de Ética da OAB). São, portanto, pessoas de direito privado, no exercício de atividades privadas, em cujas relações profissionais, são pautadas pela prevalência do interesse privado sobre o público, havendo parcialidade e pessoalidade, pois o que se busca é a defesa do interesse do cliente.

Os advogados e contadores não estão submetidos a normas do direito público (direito administrativo). Se, por acaso, houver falha na prestação do serviço delegado pela Media Provisória em comento, não haverá processo administrativo disciplinar, pois não são agentes públicos.

Deixemos, de passagem, registrado que não está sendo perpetrada qualquer crítica ou censura a qualquer atividade profissional privada, ainda mais estas profissões que são, de sobremaneira, essenciais e imprescindíveis ao estado democrático de direito. Estamos, apenas, fazendo uma constatação: nas atividades profissionais privadas há uma prevalência natural e normal pelo interesse privado, ou seja, o interesse do cliente, em detrimento de qualquer outro, inclusive do interesse público. Não há, na esfera privada, qualquer pretensão de juízo e compromisso com a imparcialidade, e nem o poderia ser exigido, sob pena de gerar possível desconfiança ou constrangimento em sua relação com o cliente que o contratou. Aqui não há Impessoalidade!

A Medida Provisória 876/19 infringe não apenas o dispositivo constitucional isolado, mas todo o ordenamento jurídico e, por decorrência lógica, vários preceitos infraconstitucionais, senão vejamos:

1) Violação do art. 236, caput, e § 3º da Constituição Federal – a atividade notarial e registral será exercida por notários e registradores, cuja delegação se dará através de concurso público de provas e títulos;


Essa MP nos faz relembrar as aulas de história do colegial, onde nos era ensinado que no período medieval, o rei, com o único toque de sua espada sobre o ombro do súdito o ordenava detentor de um título nobiliárquico, dotado de fé pública.

O sistema constitucional vigente atribui exclusivamente aos notários e registradores a pratica da fé pública notarial e registral. Um ato legislativo unilateral do Chefe do Executivo que delega esta fé pública a terceiros é, por si só, inconstitucional.


2) Violação do art. 2º e 236, § 1º, da Constituição Federal – a fiscalização da atividade notarial e registral será exercida pelo Poder Judiciário;

Toda a atividade notarial e registral é fiscalizada pelo Poder Judiciário, seja através dos juízos correcionais, das corregedorias dos tribunais estaduais ou do Conselho Nacional de Justiça, que através de provimentos e resoluções disciplinam todos os atos notariais e registrais e fiscalizam sua prática através das correições ordinárias e extraordinárias.

Como exemplo, no Código de Normas da Corregedoria de Justiça do Estado de São Paulo há 10 (dez) dispositivos que regulamentam a autenticação de documentos (como deve ser feita, o que é permitido, o que é proibido, etc.).

Já a MP 876/19 foi regulamentada pelo Poder Executivo por meio da Instrução Normativa nº 60 de 26 de abril de 2019 do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração – que integra o Ministério da Economia, dispondo sobre como deve ser feita autenticação de documentos por advogados ou contadores.

É inquestionável a usurpação, pelo Poder Executivo, de competência constitucional afeta ao Poder Judiciário (fiscalização da atividade notarial e registral).


3) Violação do art. 28, inciso IV, da Lei nº 8.906, de 1994 (Estatuto da OAB);


Art. 28. A advocacia é incompatível, mesmo em causa própria, com as seguintes atividades:

IV - ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a qualquer órgão do Poder Judiciário e os que exercem serviços notariais e de registro;


4) Violação dos artigos 7º, 25 e 37, da Lei 8.935, de 1994 (Lei dos Notários e Registradores);


Art. 7º Aos tabeliães de notas compete com exclusividade:

I - lavrar escrituras e procurações, públicas;

II - lavrar testamentos públicos e aprovar os cerrados;

III - lavrar atas notariais;

IV - reconhecer firmas;

V - autenticar cópias


Art. 25. O exercício da atividade notarial e de registro é incompatível com o da advocacia, o da intermediação de seus serviços ou o de qualquer cargo, emprego ou função públicos, ainda que em comissão.

Art. 37. A fiscalização judiciária dos atos notariais e de registro, mencionados nos artes. 6º a 13, será exercida pelo juízo competente, assim definido na órbita estadual e do Distrito Federal, sempre que necessário, ou mediante representação de qualquer interessado, quando da inobservância de obrigação legal por parte de notário ou de oficial de registro, ou de seus prepostos.

Sendo a MP 876/19 considerada constitucional, nada impedirá que outras medidas provisórias venham fazer novas delegações da fé pública a pessoas privadas. Explicamos: Nos termos do art. 6º, inciso I, da Lei 10.593/2002, compete aos ocupantes do cargo de auditor-fiscal da Receita Federal do Brasil elaborarem e proferirem decisões em processos administrativos fiscal e executar procedimento de fiscalização de tributos (fé pública administrativa). Poder-se-ia então, a partir desse pressuposto, ter por constitucional medida provisória delegatória dessa fé pública administrativa aos contadores, dispensando-se, nestes moldes, a atividade fiscalizatória dos auditores. Ou até mesmo, poderia se pensar em medida provisória que possibilitasse a um colegiado de advogados, utilizando-se da fé pública jurisdicional, decidirem processos dos juizados especiais, a pretexto de desburocratizar e desjudicializar.

Além das graves e incorrigíveis irregularidades vistas acima, há, ainda, uma consequência de ordem prática que também deve ser ponderada: qual será a responsabilidade do Estado por erros e vícios nas autenticações feitas por contadores e advogados?

O Estado através da MP 879/90 delegou uma atividade pública aos advogados e contadores e a regulamentou por meio da Instrução Normativa nº 60, de 26 de abril de 2019, do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração. Concluímos, quase que com um raciocínio lógico, de que o Estado responderá de forma objetiva por vícios e erros dos advogados e contadores.

Sem adentrar no mérito da desburocratização, fundamento ao qual foi forjada a questionada Medida Provisória, anotamos a seguinte indagação: levando-se em consideração que o procedimentos de autenticação de cópias dos documentos em cartório leva em média dois ou três minutos, dando uma enorme segurança jurídica ao poder público, isto realmente burocratiza o processo de constituição de pessoas jurídicas no País?

Não é por uma orientação ortodoxa que os atos notariais e registrais são praticados por profissionais do direito devidamente aprovados em concurso público de provas e títulos, sob a fiscalização do Poder Judiciário. Essa forma de prestação de serviço decorre da nossa Constituição Federal, promulgada sobre os pilares do estado democrático de direito.

A Câmara Federal, entendendo a pertinência e relevância da temática envolvendo o direito notarial e registral, aprovou a Frente Parlamentar da Justiça Notarial e Registral, que, a nosso ver, terá papel importantíssimo na análise das propostas legislativas atinentes a esta especialidade, evitando, assim, que aberrações jurídicas e improvisos legislativos causem insegurança jurídica e danos aos cidadãos e, sobretudo, ao Estado.

*Kélcio Bandeira Barra é Tabelião e registrador do 1° Ofício de Canaã dos Carajás/PA


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