ARTIGO - SER OU NÃO SER, EIS A QUESTÃO DO AFORAMENTO? - POR LOURIVAL DA SILVA RAMOS JÚNIOR
A frase mais famosa da peça “A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca”, escrita por William Shakespeare, reflete muito bem a dualidade do aforamento ou enfiteuse ou aprazamento (art. 678 e seq. do Código Civil de 1916): se ele existe ou não o aforamento com o registro de imóveis, uma vez que o art. 2.038 do Código Civil de 2002 (CC/02) perdeu a oportunidade de resolver a separação entre o direito obrigacional e o real no direito brasileiro, algo que espancaria qualquer dúvida sobre os limites da proibição de registro de aforamento após a vigência do CC/02.
Inicialmente, é oportuno ressaltar que, se o art. 2.038 do CC/02 tivesse regulamentado as remições de aforamento urbano mediante aquisições do domínio útil, em obediência ao art. 49 da ADCT da Constituição Federal de 1988, seria mais fácil a interpretação da norma civil supra, uma vez que não se pode prejudicar o direito fundamental à propriedade (art. 5º, inciso XXII c/c o art. 170, inciso II, ambos da CF/88) e à moradia (art. 6º da CF/88 após Emc 26/2000), que é uma das grandes mazelas sociais. Ademais, note-se que o Direito das Coisas regula relações obrigacionais (contrato de enfitêutico), assim como o Direito das Obrigações, relações jurídico-reais (forma de resgate do aforamento), algo que outrora foi analisado por Karl Larenz sobre o Código Civil alemão – BGB (2014, p. 460).
O aforamento é um título necessário ao desdobramento da propriedade no registro de imóveis, em domínio direto (senhorio) e indireto (domínio útil - foreiro), os quais são passíveis de hipoteca (art. 810, incisos III e IV, do CC/16 e art. 1.473, incisos II e III, do CC/02), bem como de usucapião, uma vez que são alienáveis (desde que o domínio direto não seja bem público). Aliás, “só na Idade Média (...) criou-se a concepção de que o enfiteuta tinha o domínio útil sobre a coisa, e o proprietário, o domínio direto” (ALVES, 2014, p. 353).
Entretanto, como os contratos obrigacionais são adimplidos (conclusos) com o pagamento, bem como o termo “enfiteuse” (em vez de domínio direto) foi previsto expressamente como direito real no texto do inciso I do art. 674 do CC/16, tal situação dificulta, ainda hoje, a aplicação normativa do aforamento, ensejando decisões e entendimentos divergentes.
Por exemplo, pela DECISÃO-GCGJ/MA-3202021 (Corregedoria Geral da Justiça do Maranhão), entendeu que é “forçoso o reconhecimento de que não há distinção entre a constituição do título e seu registro, posto que se consubstanciam em um único momento. Por esta razão, é evidente a impossibilidade de registro de enfiteuses e aforamentos particulares atualmente”. Por outro lado, o art. 1º Provimento n. 10/2013, da CGJ-PI (Corregedoria Geral da Justiça do Piauí), tinha autorizado “o registro das(os) enfiteuse/aforamento constituída sobre imóveis urbanos até a data de 11 de janeiro de 2003 e que ainda se encontram sem registro em cartório imobiliário”.
Pela decisão da CGJ-MA, pressupõe o aforamento como um direito real, ao passo que, pela CGJ-PI, um direito obrigacional. Desse modo, até parece uma aparente cisão absoluta entre tais instituto, mas, sob uma análise sistemática, é possível chegar ao resultado encontrado pelo Prof. Clóvis V. do Couto e Silva (A obrigação como processo), na década de 60, quando defendeu a separação relativa do negócio jurídico obrigacional do direito real, uma vez que o nosso sistema jurídico brasileiro é diferente do alemão e do francês, os quais têm uma separação absoluta entre tais institutos jurídicos.
No direito alemão, a compra de um imóvel possui duas vontades distintas (ou dupla formalidade): a primeira é o acordo de transmissão da coisa mediante o pagamento (contrato obrigacional – §§ 433 do BGB) e a segunda, a declaração de vontade das partes (comprador e vendedor) perante o cartório de imóveis (contrato real - § 925 do BGB), a respeito da mudança de titularidade do imóvel (§ 873, 1, do BGB). No direito francês, ao revés, desde que convencionado a coisa e o preço, o contrato já produz o efeito da transmissão da propriedade, ainda que não tenha sido entregue ou pago o preço (article 1583 do Code civil).
No direito brasileiro, entretanto, a manifestação de vontade no ato notarial (art. 108 c/c o art. 481, ambos do Código Civil de 2002) serve como título causal para transmissão dominial no cartório de imóveis (art. 1.245 do Código Civil de 2002), razão pela qual não precisa de uma dupla manifestação de vontade, nos moldes do direito germânico, bem como não se equipara ao direito francês, pois a escritura pública não tem o condão de alterar a titularidade dominial.
Entretanto, como o adimplemento (ou conclusão) do negócio obrigacional dar-se-á com o pagamento (art. 933 do Código Civil de 1916 e do art. 307 do Código Civil de 2002) – e não com o registro de imóvel –, até parece uma separação absoluta entre direito obrigacional e direito real no Código Civil brasileiro. Ora, se o nosso sistema não requer duplicidade nem unicidade de vontades para transmissão do imóvel, parece que tem razão o Prof. Clóvis V. do Couto e Silva, ao defender a separação relativa entre o direito obrigacional e o real, na medida em que o negócio jurídico estabelece um vínculo de alienação mediante o pagamento, até a sua extinção com o registro de imóveis.
Pois bem, o aforamento também se inclui nessa teoria pelos seguintes motivos: (i) o art. 679 do CC/16 deixa expresso a sua natureza obrigacional sem prazo de validade (“o contrato de enfiteuse é perpétuo”) e (ii) o texto do art. 678 do CC/16 (da enfiteuse) tem a mesma lógica do art. 481 (da compra e venda) do CC/02. No caso, tanto a compra e venda cria o vínculo obrigacional de “transmissão” da coisa mediante o pagamento, quanto o aforamento cria um vínculo obrigacional de “atribuição” de domínio útil mediante o pagamento. Ademais, o texto do art. 692 do CC/1916, que trata da extinção da enfiteuse, não condiciona a exigibilidade do foro ao prévio registro de imóveis. Por fim, se o direito real sobre imóvel alheio é o domínio útil, já que o aforamento é um título causal necessário ao desdobramento da propriedade, será premente uma releitura do inciso I do art. 674 do Código Civil de 1916 (“São direitos reais, além da propriedade: I - A enfiteuse (...)”), devido a sua ultratividade pelo art. 2.038 do CC/02.
Não obstante, como a tese do Prof. Clóvis não foi integralmente positivada no CC/02 (boa-fé objetiva e deveres anexos do contrato), assim como não se conhece decisão vinculante do STJ sobre proibição de aforamento após 2002, ocorre o seguinte dilema: se adotar a separação absoluta do direito obrigacional e real, realmente não será possível inscrever o aforamento após a vigência do CC/02, porque somente existiria após o registro de imóveis, tornando mais escasso o direito à moradia e ao desenvolvimento de atividades econômicas; e ao revés, se adotar a separação relativa entre tais institutos, o aforamento nascerá como um contrato, até sua extinção no registro de imóvel, criando o domínio direto (senhorio) e do domínio útil (foreiro).
Na doutrina de Nelson Rosenvald, por exemplo, o art. 2.038 do CC/02 não permite o registro de aforamento após a vigência desse Código, mas apenas assegura o direito das enfiteuses já registradas (Código Civil Comentado, SP: Manole, 10ª ed., p. 2.266). Do contrário, o tabelião/registrador Lourival da Silva Ramos Júnior entende possível o registro de aforamento após a vigência do CC/2002, uma vez que o registro de imóvel constituirá o domínio útil (Revista de Direito Imobiliário, vol. 70, jan.-jun./2011, p. 245-268).
No tocante ao Conselho Nacional de Justiça, no Procedimento de Controle Administrativo n. 0007097-27.2013.2.00.0000 - julgado em 02/12/2014, nulificou o dito Prov. 10/2013 da CGJ/PI porque permitiu o registro de aforamento em desacordo com o art. 2.038 do CC/02, ensejando fraudes, conluios e “grilagens”, além de “o ato administrativo impugnado perpetua indefinidamente a possibilidade de constituição (registro) de enfiteuses”.
Pelo teor da decisão, já se percebe que o CNJ adota a tese da separação absoluta entre o direito obrigacional e o real. Quanto ao tempo do aforamento, constituído por contrato ou testamento (BEVILÁQUA, 1956, p. 266), não se conhece lei fixando o seu lapso temporal de validade, nem a citada decisão administrativa informou o seu fundamento legal. Em França, por outro lado, o art. 451-1 do Código rural e pesca marítima fixa que a “enfiteuse” ou “locação enfitêutica” (bail emphytéotique) “(...) deve ser consentida por mais de 18 anos, mas não pode ultrapassar noventa e nove anos, e não pode se prolongar de maneira tácita” (tradução livre – “https://www.legifrance.gouv.fr” - acessado em 17/04/2021). No tocante à grilagem de terras, parece que a decisão do CNJ não serve ao deslinde do dilema supra, pois, para o registro de aforamento (ainda que não fosse antigo), faz-se necessária a confirmação do Município, uma vez que se trata de bem público, bem como a confirmação de pagamento de foro e laudêmios, para evitar a responsabilização tributária do cartório (inciso VI do art. 134 do Código Tributário Nacional).
Em relação ao Superior Tribunal de Justiça, ainda não se tem conhecimento de decisão vinculante sobre o art. 2.038 do CC/02, razão pela qual as suas decisões devem ser analisadas com cautela, pois, poderá o objeto da lide não resolver o dilema da separação entre o direito obrigacional e o real. Por exemplo, no julgamento da Resp 1.228.615/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, DJe 05/03/2014, foi deliberado pela impossibilidade de usucapião de domínio útil dado em enfiteuse a particular pelo Poder Público, em razão da ausência do aforamento está registrado previamente na serventia de imóveis. Mas não trata de proibição de registro aforamento após a vigência do CC/02.
Ante tais argumentos, e ao contrário da maioria, entendo que o art. 2.038 do CC/02 – à luz do direito fundamental à propriedade e à moradia – proibiu a constituição de novos “contratos” de aforamento (arts. 678 a 694, todos do CC/16), e não a de “domínio útil” pelo aforamento (inciso I do art. 674 do CC/16), a fim de não aumentar o déficit habitacional ou prejudicar o desenvolvimento econômico brasileiro.
*Lourival da Silva Ramos Júnior - Titular da Serventia Extrajudicial de Sucupira do Riachão/MA.
Referência
ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 16ª ed. RJ: Forense, 2014, p. 353
BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. 4ª ed. atualizada, RJ: Forense, 1956, p. 266
COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A obrigação como processo. RJ: Ed. FGV, 2006.
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 7ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, p. 460.
RAMOS JR, Lourival da Silva. Revista de Direito Imobiliário, ano 34, vol. 70, jan.- jun./2011, São Paulo: RT, p. 245-268
ROSENVALD, Nelson (e outros). Código Civil Comentado. SP: Manole, 10ª ed., p. 2.26
FONTE: BLOG DO DG