ESTATUTO DA DESJUDICIALIZAÇÃO: CARTÓRIOS AVANÇAM NO PROCESSO DE SOLUÇÃO DE PROCESSOS NO BRASIL
A alta taxa de litigiosidade no Judiciário brasileiro não vem de hoje. Em 2010, tramitaram cerca de 65,7 milhões de processos somente na Justiça comum, o equivalente a 543 mil processos a mais que no ano anterior. Dez anos depois, o último relatório “Justiça em Números”, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mostra que o Judiciário encerrou o ano de 2019 com mais de 77 milhões de processos pendentes de solução, um aumento de mais de 18% em menos de uma década.
Mesmo com uma quantidade de processos pendentes inferior a 2018, a pesquisa reafirma a dificuldade do Poder Judiciário em conseguir a alta litigiosidade presente no país. Ainda segundo o relatório, apenas 12,5% de processos foram solucionados pela via da conciliação, uma das bandeiras da Justiça nos últimos anos para resolver os processos pendentes de julgamento.
Há, no entanto, um movimento crescente acontecendo no país para que outros atores integrantes do sistema de Justiça, dentre eles os cartórios extrajudiciais, tornem-se uma porta eficaz para a resolução de conflitos. “Esse movimento tem um propósito claro que é o enfrentamento do número de processos existentes e que anualmente ingressam no Judiciário e a tentativa de solução de conflitos de forma mais célere e menos custosa”, explica o juiz instrutor do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Daniel Vianna Vargas.
No bojo de ações desjudicializantes praticadas pelos cartórios extrajudiciais todos os anos estão inúmeros atos como o divórcio e inventário, usucapião extrajudicial, reconhecimento de paternidade socioafetiva, alteração de prenome e gênero, retificação de nome, conciliação e mediação de litígios, além de inúmeras outras práticas já consagradas pela doutrina brasileira.
Tamanha é a importância dos Cartórios no processo de desjudicialização das demandas que abarrotam o Poder Judiciário, que autoridades e estudiosos no assunto já falam na criação de um “Estatuto da Desjducialização”, uma vez que a cultura de resolver os problemas pendentes no Judiciário está cada vez mais em pauta. A Revista Cartórios com Você apurou que somente no Judiciário e Legislativo brasileiro mais de 50 propostas buscam fomentar a atuação dos Cartórios no processo de desjudicialização.
“O conjunto oferece uma boa referência do que poderíamos chamar de Estatuto da Desjudicialização. A desjudicialização não está começando entre nós, ela é um processo em curso e que se juntar todas essas peças, elas apontam na direção de um Estatuto da Desjudicialização. Isso está em curso. Isso existe”, reforça o professor do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São Paulo (USP), Celso Fernandes Campilongo.
Em setembro de 2020, quando assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Luiz Fux afirmou que sua gestão iria promover a desjudicialização de temas e “devolver à arena política e administrativa aqueles que não competem ao Judiciário”. “Será nosso objetivo preservar a dignidade da jurisdição constitucional. A intervenção judicial em temas sensíveis deve ser minimalista, respeitando os limites da capacidade institucional dos juízes. Os poderes Legislativo e Executivo devem arcar com as consequências políticas das suas próprias decisões”, disse o ministro do STF ao tomar posse da presidência da Corte mais alta do país.
Cerca de um ano depois, no entanto, o próprio STF, na figura do ministro Dias Toffoli, ressaltou que “a litigiosidade no Brasil permanece alta e a cultura da conciliação, incentivada mediante política permanente do CNJ desde 2006, ainda apresenta lenta evolução”.
Para tentar mudar essa realidade, o CNJ tem como meta realizar ações de prevenção e desjudicialização de litígios voltadas aos objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030 das Nações Unidas. A ideia é desjudicializar o maior número de demandas possíveis, o que na prática faz com que atos que antes eram resolvidos apenas na Justiça comum passem a ser solucionados extrajudicialmente, principalmente com a atuação dos cartórios extrajudiciais.
“A Corregedoria Nacional tem uma visão avançada sobre a participação dos Cartórios na desjudicialização. O papel das unidades extrajudiciais, agindo por delegação em atos de divórcios, inventários, usucapião e apostilamento, onde, via de regra, a litigiosidade é nula ou muito baixa, é muito benéfico para a sociedade brasileira, inclusive porque libera recursos e tempo do Poder Judiciário para que este se ocupe de problemas mais prementes”, afirma o desembargador Marcelo Martins Berthe, supervisor da Coordenadoria de Gestão de Serviços Notariais e de Registro da Corregedoria Nacional de Justiça.
Segundo a conselheira do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Maria Tereza Uille Gomes, o Poder Judiciário não tem condições de dar conta de todos os problemas da sociedade, especialmente os decorrentes de situações simples, que muitas vezes independem da necessidade de intervenção estatal. “Os problemas complexos naturalmente já são de responsabilidade do Judiciário, mas as questões mais simples que podem ser transacionadas pelo cidadão não precisam estar atreladas à atuação do Poder Judiciário”, destaca a conselheira.
PREVENÇÃO E SOLUÇÃO DE LITÍGIOS
Na tentativa de discutir a prevenção e a solução extrajudicial de litígios, foi realizada no final de agosto a segunda edição de um evento promovido pelo Conselho da Justiça Federal por intermédio do Centro de Estudos Judiciários (CEJ), em parceria com a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), com coordenação geral dos ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Luis Felipe Salomão e Paulo de Tarso Sanseverino.
Após dois dias de intensos debates, a II Jornada Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios foi encerrada com a aprovação plenária de 142 propostas de enunciados apresentadas por quatro comissões temáticas. A comissão que discutiu “Desjudicialização” levou 35 propostas para discussão final, sendo que 25 foram aprovadas.
Na plenária que discutiu as propostas levadas por inúmeros integrantes da Comissão de Desjudicialização estavam presentes assuntos referentes a desapropriação amigável, alienação fiduciária, usucapião, pacto comissório, inventário extrajudicial, contratos agrários, pacto de não execução judicial, retomada do nome de solteiro, parentalidade socioafetiva, inclusão de sobrenome, registro de natimorto, cooperação nacional interinstitucional, união estável, sistema multiportas, disputas consumeristas, desjudicialização das execuções, tutela antecipada, adjudicação compulsória extrajudicial, resolução de disputas, autocomposição nas ações de improbidade administrativa, oferta de cursos de capacitação que tratem do assunto desjudicialização, dentre outras medidas.
“Temos que buscar saídas eficientes para a dificuldade que enfrentamos no manejo da quantidade de demandas que temos hoje pela frente. Temos que pensar em soluções adequadas para o momento que estamos vivendo de modo que essa reflexão tem que ser mesmo em conjunto”, disse o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Luis Felipe Salomão.
Para o presidente do STJ e do Conselho da Justiça Federal, ministro Humberto Martins, a desjudicialização se mostra cada vez mais importante e ganha contornos relevantes com o abarrotamento de processos no Judiciário brasileiro. “A possibilidade de solução de litígios por meio da conciliação, negociação, mediação e arbitragem é fundamental para nossa sociedade e ao pleno exercício da cidadania”, destacou.
A comissão que aprovou as propostas relacionadas à desjudicialização, contou, entre inúmeras autoridades, com a participação de dois enunciados formulados pela Associação dos Notários e Registradores do Estado do Rio Grande do Sul (Anoreg/RS).
“O primeiro enunciado diz respeito à possibilidade de se proceder à adjudicação compulsória de forma extrajudicial e o objetivo da proposição foi de orientar a adoção de política pública voltada a evitar a judicialização na situação apresentada, tendo em vista que hoje há milhares de ações de adjudicação compulsória tramitando na Justiça”, explica o presidente da Anoreg/RS, João Pedro Lamana Paiva. “Já o segundo enunciado proposto trata da possibilidade de se averbar a consolidação da propriedade plena pelo credor fiduciário em decorrência de prévio registro de alienação fiduciária de imóvel (Lei nº 9.514/97), mesmo tendo sido averbada, posteriormente ao registro citado, a ordem de indisponibilidade judicial dos direitos de devedor fiduciante”, completa.
Ainda de acordo com Lamana, o próximo passo em relação as propostas é fazer sua ampla divulgação às entidades de classe Notarial e Registral, bem como aos demais operadores do Direito Imobiliário.
Para o juiz instrutor do STJ, Daniel Vianna Vargas, o resultado da Jornada foi positivo e, embora os enunciados aprovados não sejam vinculantes, ou seja, não tenham garantia de que serão adotados pelo Judiciário, as propostas auxiliam os operadores do Direito na aplicação e interpretação do ordenamento. “Os frutos alcançados pela Jornada devem servir como caixa de ressonância da sociedade atual, naquilo que diz respeito às formas adequadas à prevenção dos conflitos de interesses, buscando meios de solução através de métodos extrajudiciais”, reitera o magistrado.
LEGISLATIVO
Embora o Poder Judiciário brasileiro tenha encampado o discurso da proliferação da desjudicialização nas suas atividades, no Poder Legislativo também tramitam inúmeros projetos que podem vir a modificar a cultura da litigiosidade no Brasil.
Em 2016, foi instalada no Congresso Nacional uma Comissão Mista de Desburocratização para discutir propostas desjudicializantes, sendo que 31 projetos foram aprovados. Depois disso, metade deles foi para o Senado e a outra metade para a Câmara dos Deputados, sendo que o Senado já aprovou oito propostas.
Dentre as medidas aprovadas no Senado, estão a simplificação do registro de empresários e pessoas jurídicas, a constituição de empresa individual de responsabilidade limitada por pessoa natural ou jurídica, a ampliação dos dias e horários de funcionamento dos cartórios, o estabelecimento de que qualquer prova escrita de dívida é título sujeito a protesto, o estabelecimento que os documentos assinados pelo devedor são considerados título executivo extrajudicial, além de estabelecer que a dissolução de sociedade por decisão da maioria dos sócios ocorrerá com a comunicação à autoridade competente.
“A Comissão Mista da Desburocratização foi uma iniciativa importante do Congresso Nacional que buscou se debruçar sobre algumas propostas que melhorassem procedimentos e que, ao mesmo tempo, não gerassem custos nem para o Estado, nem para o cidadão ou as empresas”, ressaltou o relator da Comissão Mista, senador Antonio Anastasia (PSD/MG).
De acordo com o texto da Comissão, “a desburocratização e a consequente melhoria do ambiente de negócios são um requisito essencial para a elevação das taxas de investimento e de crescimento econômico no País”.
Embora ainda não tenha sido aprovada nenhuma proposta na Câmara dos Deputados, o antigo presidente da Comissão, o deputado federal Júlio Lopes (PP/RJ), afirma que a desburocratização sempre foi um dos seus maiores objetivos como parlamentar.
“A desburocratização sempre foi um dos meus maiores objetivos parlamentares. Mas ainda assim avançamos pouco na questão da desjudicialização em função de todo o emaranhado legislativo do país e da difícil maturidade política que temos. Isso ainda é um objetivo de médio a longo prazo e espero que tenhamos maturidade institucional e política para atingi-los. Acredito que a sociedade como um todo vai trabalhar nesses processos de mediação e desjudicialização. E nesse contexto os Cartórios terão uma participação importante”, ressalta o deputado.
Por enquanto, estão em análise diversas propostas na Câmara, como a abertura ao acesso a informações, a facilitação do registro de nascimento, a habilitação para o casamento, a mudança do regime de bens do casamento, a conversão da união estável, a separação judicial e divórcio, a carta de sentença, a partilha e o testamento, o registro de empresas, a transferência de veículos, as assembleias virtuais em condomínios residenciais, o depósito vinculado de dinheiro, os direitos sobre imóveis, a gestão fiscal e a possibilidade de evitar que o protesto de uma dívida deixe de ser registrado quando houver divergências quanto à jurisprudência em torno do assunto.
Como muitas dessas propostas já são previstas no dia a dia dos atos feitos nos Cartórios brasileiros, o deputado federal Júlio Delgado (PSB/MG) diz que as serventias extrajudiciais colhem bons resultados, dependendo da abordagem, da cultura e cidade de atuação.
“A desjudicialização é sempre um caminho para desafogar o Poder Judiciário. Apesar do lobby de se manter as ações judiciais, com a desjudicialização os processos de maior conflito, gravidade e relevância deixam de transitar na Justiça, enquanto podem tentar a solução através da conciliação. Temos que pensar que esse tema não seja apenas afeto às práticas de consumo, mas com relação a todos os outros conflitos judiciais que não demandem um aprofundamento e análise da matéria”, pondera o parlamentar.
Para o senador Antonio Anastasia, os Cartórios cumprem um papel fundamental, além de realizarem um trabalho que consegue abarcar grande número da população, devido a sua capilaridade e presença nos municípios mais pobres do país. “Os Cartórios extrajudiciais cumprem uma missão importante em todo o território brasileiro. É um trabalho importantíssimo, especialmente para o interior do nosso Brasil e para os municípios menores, por isso permitimos que esses cartórios possam emitir ali, por exemplo, a carteira de identidade ou a carteira de trabalho, na forma prevista em convênio. Significa menos burocracia, mais facilidade e, principalmente, o que é mais importante, mais cidadania”, atesta o parlamentar.
ACESSO À JUSTIÇA
Com o fortalecimento e consolidação das raízes do Direito Internacional, o surgimento da Organização das Nações Unidas (ONU) e o fim do fascismo, a Itália e a Europa viram surgir nas décadas de 70 e 80, um movimento em favor da efetividade e do acesso aos direitos, em grande parte, já positivados. Naquela época, desencadeou-se um projeto que ficou conhecido como “projeto florentino de acesso à Justiça”, sob a direção de Mauro Cappelletti e Bryant Garth.
O Projeto Florence objetivou uma grande mobilização, que agregou pesquisadores de diversos ramos das ciências sociais, aplicadas ou não, para a realização de uma coleta de dados que envolvesse o sistema judicial de inúmeros países participantes da pesquisa.
O estudo internacional dos autores se desencadiou em uma série de obras que discutem principalmente o problema da igual acessibilidade para todos da Justiça estatal. Na medida em que as sociedades cresceram e se reorganizaram, o conceito de acesso à Justiça teve que ser igualmente modificado, representando agora não apenas o ingresso com uma demanda judicial, mas também a eficácia dos meios de acesso e a efetividade jurisdicional ao amparo do direito pleiteado.
“Esse é possivelmente o marco teórico, a referência que abriu muito espaço para todo esse debate sobre duração razoável do processo, amplo acesso à Justiça, desjudicialização e a importância da atividade extrajudicial. Depois do livro, a própria terminologia anterior a este marco foi sendo abandonada. Se falava muito até os anos 70 em assistência judiciária. Uma ideia muito ligada ao Judiciário, ao formalismo do processo judicial. Depois dessa obra, a terminologia é incorporada pela Constituição de 88, em assistência jurídica integral e não em assistência judiciária”, explica o professor da Universidade de São Paulo (USP) Celso Fernandes Campilongo.
No Brasil, em detrimento de uma “assistência judiciária”, começou-se a se falar, com a publicação da Constituição de 1988 em “assistência jurídica integral”, fortalecendo discussões que envolvessem formas alternativas de resolução de conflito, como a mediação e a arbitragem, e que mais tarde abarcariam aspectos teóricos que envolvem o tema da desjudicialização.
O debate da desjudicialização ganhou reforço importante também com o advento do Código de Processo Civil de 2015, que entrou em vigor em 2016, e que reafirmou a importância da introdução de princípios e valores, todos eles buscando a duração razoável do processo, a facilitação do acesso à Justiça e a simplificação dos procedimentos. De uma forma geral, a filosofia do Código de 2015 é voltada a encurtar prazos, criar procedimentos mais simples, facilitar e estimular a mediação e a própria arbitragem.
“O que vivemos aqui é uma coisa aberrante. Um processo que demora 10, 15 anos. É a negação do acesso à Justiça pela duração completamente desarrazoada dos processos. A atenção para isso já existia antes do Código, e após sua publicação esses princípios ficaram consolidados e ganharam enorme impulso”, diz Campilongo.
Para o desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJ/MG), Humberto Theodoro Júnior, a cultura da desjudicialização não deve ser instigada apenas pelo Poder Judiciário, mas por todos os operadores do Direito.
“É necessário que todos empreendam esforços para que conflitos de Direito material, que não precisam ser necessariamente tratados no ambiente judicial, possam passar por outras formas de solução antes de desaguar no Judiciário. É evidente que o Poder Judiciário pode contribuir para uma maior desjudicialização dos conflitos, na medida em que prestigiar a solução negocial entre as partes”, argumenta o desembargador.
Outra medida não menos importante foi a promulgação da Lei 11.441, do divórcio, partilha e inventário, que deu nova redação aos artigos 982, 983, 1.031; criou o artigo 1.124- A e revogou o parágrafo único do artigo 983, todos do Código de Processo Civil. A Lei prevê procedimentos extrajudiciais aos casos de separação e divórcio consensuais e inventário, que preenchidos os requisitos legais, poderão ser realizados por meio de escritura pública.
De acordo com dados do Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal (CNB/CF), foram 856.567 divórcios diretos realizados de janeiro de 2007 a setembro de 2021. O número de inventários foi ainda maior: 1,61 milhão de atos notariais. Além das vantagens para os cidadãos e desafogamento do Poder Judiciário, a atuação notarial também gerou uma economia de quase R$ 5 bilhões aos cofres públicos somente em 2018.
“As partes, não tendo capacidade para resolver seus conflitos internos, acabam levando os restos do amor para o Judiciário. E isto era estimulado pela própria lei quando dizia que havia um culpado pelo fim do casamento. Nesse sentido, os Cartórios de Notas e de Registro Civil das Pessoas Naturais tem sido fundamentais para entender e praticar esse Direito de Família e sucessões contemporâneo”, analisa o presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Rodrigo da Cunha Pereira.
MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO
A Lei Federal nº 11.441 de 2007, que permitiu a realização de separações, divórcios, inventários e partilhas em Cartórios de Notas, é apenas uma das normas que prevê a desjudicialização nas serventias extrajudiciais brasileiras.
Em 2017, instituído pela Lei Federal nº 13.465/2017, e disciplinado pelo Provimento n° 65 da Corregedoria Nacional de Justiça, o procedimento da usucapião extrajudicial – forma de aquisição de propriedade móvel ou imóvel pela posse prolongada e sem interrupção, durante o prazo legal estabelecido – passou a ter a ata notarial como documento primário e essencial para dar início ao procedimento de transferência de propriedade, que se dá perante o Registro de Imóvel.
Já em 2018, o Provimento nº 67 da Corregedoria Nacional de Justiça autorizou que os cartórios extrajudiciais pudessem oferecer o serviço de mediação e conciliação, atividade antes exclusiva do Judiciário.
“As serventias extrajudiciais têm prestado relevante papel na temática da desjudicialização, diante da sua credibilidade, da capilaridade que possuem em um país continental como o Brasil, bem como da dupla fiscalização que sofrem (CNJ e Corregedoria do TJ). Há cidades que possuem Cartório e não contam com uma sede do Poder Judiciário. Importante ressaltar o Provimento 67/2018, da Corregedoria do CNJ, que autorizou as serventias extrajudiciais a oferecerem a conciliação e a mediação. Atualmente esse ato normativo está sendo reavaliado para permitir a efetiva implementação dessas atividades”, reforça a juíza de Direito no Espírito Santo (TJ/ES) Trícia Navarro Xavier Cabral.
Enquanto o trabalho de mediação e conciliação está sendo revisado, a Justiça comum continua tendo pouca eficiência em relação à solução de sentenças homologatórias. Segundo o CNJ, em 2019, 12,5% dos julgados foram por meio de sentenças homologatórias de acordo, índice que aponta redução pelo terceiro ano consecutivo. Na fase de execução, as sentenças homologatórias de acordo corresponderam, em 2019, a 6,1% do total de sentenças, e na fase de conhecimento, a 19,6%.
Desde o novo Código de Processo Civil (CPC), que entrou em vigor em março de 2016 e tornou obrigatória a realização de audiência prévia de conciliação e mediação, em três anos o número de sentenças homologatórias de acordo cresceu 5,6%, passando de 3.680.138 no ano de 2016 para 3.887.226 em 2019. Em relação ao ano anterior, houve aumento de 228.782 sentenças homologatórias (6,3%).
De acordo com o desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP) José Renato Nalini, o Conselho Nacional de Justiça auxiliaria o desenvolvimento de uma cultura de pacificação se viesse a confiar mais nas delegações extrajudiciais e pudesse ampliar as possibilidades de busca de opções ao litígio.
“A timidez na realização de composições reside na cultura que já se acostumou a ver a demanda como a única alternativa disponível. É preciso insistir na formação permanente dos delegatários e de seus prepostos e funcionários”, orienta o desembargador aposentado paulista.
Para a mestre e doutora em Direito Processual pela USP e oficial de Registro Civil no Cartório da Vila Guilherme, em São Paulo, Érica Barbosa e Silva, o congestionamento das vias judiciais exigiu a compreensão das finalidades institucionais mais estritas do Judiciário e incentivou formas consensuais de resolução de conflitos.
“Esse é um cenário que acabou por afetar todas as formas de prestação de serviços, atingindo o Judiciário e, é claro, os Cartórios. Com isso, antigos paradigmas deram lugar às necessidades atuais, sobretudo pela imposição de distanciamento social, apresentando novos desafios e perspectivas. Também por isso é imperativa a inserção das serventias extrajudiciais na resolução consensual de conflitos, que já experimenta ampla forma de prestação online”, defende a registradora.
Segundo a vice-presidente da Comissão de Notários e Registradores do IBDFAM, Karin Regina Rick Rosa, notários e registradores ocupam um espaço de destaque no conjunto de possibilidades para efetivação de direitos sem a necessidade da atuação do Poder Judiciário, justamente por serem instituições com tradição e solidez, características que, juntamente com a confiança, continuam sendo muito caras aos cidadãos.
“O problema é que hoje enfrentamos uma taxa de congestionamento de quase 70% dos processos. Ou seja, para cada dez processos que entram, apenas três saem. Com isso fica mais evidente que as questões que se enquadram na esfera da jurisdição voluntária devem poder ser encaminhadas por outros meios, contribuindo, inclusive, para o desafogamento do Judiciário”, conclui Rosa.
FONTE: Revista Cartórios com você